Mario Quintana

"Todos estes que ai estão atravacando meu caminho,eles passarão,eu passarinho"

Era um lugar em que Deus ainda acreditava na gente...Verdade que se ia à missa quase só para namorar mas tão inocentemente que não passava de um jeito, um tanto diferente,de rezar enquanto, do púlpito, o padre clamava possesso contra pecados enormes.Meu Deus, até o Diabo envergonhava-se.Afinal de contas, não se estava em nenhuma Babilônia...Era só uma cidade pequena,com seus pequenos vícios e suas pequenas virtudes:um verdadeiro descanso para a milícia dos Anjos comsuas espadas de fogo.- um amor! Agora, aquela antiga cidadezinha está dormindo para sempreem sua redoma azul, em um dos museus do Céu.(Mario Quintana - Baú de Espantos)

Minha estrela não é a de Belém:A que, parada, aguarda o peregrino.Sem importar-se com qualquer destino.A minha estrela vai seguindo além...— Meu Deus, o que é que esse menino tem? —Já suspeitavam desde eu pequenino.O que eu tenho? É uma estrela em desatino...E nos desentendemos muito bem!E quando tudo parecia a mesmo E nesses descaminhos me perdia.Encontrei muitas vezes a mim mesmo...Eu temo é uma traição do instinto Que me liberte, por acaso, um dia Deste velho e encantado Labirinto. (Mario Quintana)


De uma feita, estava eu sentado sozinho num banco da Praça da Alfândega quando começaram a acontecer coisas incríveis no céu, lá pelas bandas da Casa de Correção: havia tons de chá, que se foram avinhando e se transformaram nuns roxos de insuportável beleza. Insuportável, porque o sentimento de beleza tem de ser compartilhado. Quando me levantei, depois de findo o espetáculo, havia umas moças conhecidas, paradas à esquina da Rua da Ladeira.— Que crepúsculo fez hoje! — disse-lhes eu, ansioso de comunicação.— Não, não reparamos em nada — respondeu uma delas. –– Nós estávamos aqui esperando o Cezimbra.E depois ainda dizem que as mulheres não têm senso de abstração...(Mario Quintana)

Que esta minha paz e este meu amado silêncio Não iludam a ninguém Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios Acho-me relativamente feliz Porque nada de exterior me acontece...Mas,Em mim, na minha alma,Pressinto que vou ter um terremoto! (Mario Quintana)


O milagre não é dar vida ao corpo extinto,Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...Nem mudar água pura em vinho tinto...Milagre é acreditarem nisso tudo! (Mario Quintana)

Da vez primeira em que me assassinaram,Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.Depois, a cada vez que me mataram,Foram levando qualquer coisa minha.Hoje, dos meu cadáveres eu sou O mais desnudo, o que não tem mais nada. Arde um toco de Vela amarelada,Como único bem que me ficou.Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! Pois dessa mão avaramente adunca Não haverão de arracar a luz sagrada! Aves da noite! Asas do horror! Voejai! Que a luz trêmula e triste como um ai,A luz de um morto não se apaga nunca! (Mario Quintana)

Se o poeta falar num gato, numa flor,Num vento que anda por descampados e desvios.E nunca chegou à cidade...Se falar numa esquina mal e mal iluminada...Numa antiga sacada...num jogo de dominó...Se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade...Se falar na mão decepada no meio de uma escada de caracol...Se não falar em nada.E disser simplesmente tralalá...Que importa? Todos os poemas são de amor! (Antologia poética. Porto Alegre: Globo, 1972 p.105)