Mario Quintana

"Todos estes que ai estão atravacando meu caminho,eles passarão,eu passarinho"



Todos os jardins deviam ser fechados,com altos muros de um cinza muito pálido,onde uma fonte pudesse cantarsozinhaentre o vermelho dos cravos.O que mata um jardim não é mesmo alguma ausência nem o abandono...O que mata um jardim é esse olhar vazio de quem por eles passa indiferente. (Mario Quintana)

Eu agora - que desfecho Já nem penso mais em ti Mas será que nunca deixo De lembrar que te esqueci? (Mário Quintana)


Tão lenta e serena e bela e majestosa [vai passando a vaca ] Que, se fora na manhã dos tempos, de rosas a coroaria A vaca natural e simples como a primeira canção A vaca, se cantasse,Que cantaria?Nada de óperas, que ela não é dessas, não!Cantaria o gosto dos arroios bebidos de madrugada,Tão diferente do gosto de pedra do meio-dia!Cantaria o cheiro dos trevos machucados.Ou, quando muito,A longa, misteriosa vibração dos alambrados...Mas nada de superaviões, tratores, êmbolos (Mário Quintana)

O meu amor, o meu amor, Maria É como um fio telegráfico da estrada Aonde vêm pousar as andorinhas...De vez em quando chega uma E canta(Não sei se as andorinhas cantam, mas vá lá!)Canta e vai-se embora Outra, nem isso,Mal chega, vai-se embora.A última que passou Limitou-se a fazer cocô No meu pobre fio de vida! No entanto, Maria, o meu amor é sempre o mesmo:As andorinhas é que mudam. (Mario Quintana)

"Eterno, é tudo aquilo que dura uma fração de segundo, mas com tamanha intensidade, que se petrifica, e nenhuma força jamais o resgata.."(Mario Quintana)

Com a pele do leão vestiu-se o burro um dia.Porém no seu encalço, a cada instante e hora,"Olha o burro! Fiau Fiau!" gritava a bicharia...Tinha o parvo esquecido as orelhas de fora! (Mario Quintana)

Tão bom viver dia a dia…A vida assim, jamais cansa… Viver tão só de momentos.Como estas nuvens no céu… E só ganhar, toda a vida,Inexperiência… esperança… E a rosa louca dos ventosPresa à copa do chapéu. Nunca dês um nome a um rio:Sempre é outro rio a passar. Nada jamais continua,Tudo vai recomeçar! E sem nenhuma lembrança Das outras vezes perdidas,Atiro a rosa do sonho Nas tuas mãos distraídas… (Mario Quintana)

Quando desperto mansamente agora é todo um sonho azul minha janela e nela ficam presos esses olhos amando-te no céu que faz lá fora.Tu me sorris em tudo, misteriosa...e a rua que - tal como outrora - desço,a velha rua, eu mal a reconheço em sua graça de menina-moça...Riso na boca e vento no cabelo,delas vem vindo em bando...E ao vê-lopor um acaso olha-me a mais bela.Sabes eu amo-te a perder de vista...E bebo então, com uma saudade louca,teu grande olhar azul nos olhos dela! (Mário Quintana)

Na mesma pedra se encontram,Conforme o povo traduz,Quando se nasce - uma estrela,Quando se morre - uma cruz.Mas quantos que aqui repousam Hão de emendar-nos assim:"Ponham-me a cruz no princípio...E a luz da estrela no fim!"(do livro A Cor do Invisível)

Era um lugar em que Deus ainda acreditava na gente...Verdade que se ia à missa quase só para namorar mas tão inocentemente que não passava de um jeito, um tanto diferente,de rezar enquanto, do púlpito, o padre clamava possesso contra pecados enormes.Meu Deus, até o Diabo envergonhava-se.Afinal de contas, não se estava em nenhuma Babilônia...Era só uma cidade pequena,com seus pequenos vícios e suas pequenas virtudes:um verdadeiro descanso para a milícia dos Anjos comsuas espadas de fogo.- um amor! Agora, aquela antiga cidadezinha está dormindo para sempreem sua redoma azul, em um dos museus do Céu.(Mario Quintana - Baú de Espantos)

Minha estrela não é a de Belém:A que, parada, aguarda o peregrino.Sem importar-se com qualquer destino.A minha estrela vai seguindo além...— Meu Deus, o que é que esse menino tem? —Já suspeitavam desde eu pequenino.O que eu tenho? É uma estrela em desatino...E nos desentendemos muito bem!E quando tudo parecia a mesmo E nesses descaminhos me perdia.Encontrei muitas vezes a mim mesmo...Eu temo é uma traição do instinto Que me liberte, por acaso, um dia Deste velho e encantado Labirinto. (Mario Quintana)


De uma feita, estava eu sentado sozinho num banco da Praça da Alfândega quando começaram a acontecer coisas incríveis no céu, lá pelas bandas da Casa de Correção: havia tons de chá, que se foram avinhando e se transformaram nuns roxos de insuportável beleza. Insuportável, porque o sentimento de beleza tem de ser compartilhado. Quando me levantei, depois de findo o espetáculo, havia umas moças conhecidas, paradas à esquina da Rua da Ladeira.— Que crepúsculo fez hoje! — disse-lhes eu, ansioso de comunicação.— Não, não reparamos em nada — respondeu uma delas. –– Nós estávamos aqui esperando o Cezimbra.E depois ainda dizem que as mulheres não têm senso de abstração...(Mario Quintana)

Que esta minha paz e este meu amado silêncio Não iludam a ninguém Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios Acho-me relativamente feliz Porque nada de exterior me acontece...Mas,Em mim, na minha alma,Pressinto que vou ter um terremoto! (Mario Quintana)


O milagre não é dar vida ao corpo extinto,Ou luz ao cego, ou eloquência ao mudo...Nem mudar água pura em vinho tinto...Milagre é acreditarem nisso tudo! (Mario Quintana)

Da vez primeira em que me assassinaram,Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.Depois, a cada vez que me mataram,Foram levando qualquer coisa minha.Hoje, dos meu cadáveres eu sou O mais desnudo, o que não tem mais nada. Arde um toco de Vela amarelada,Como único bem que me ficou.Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada! Pois dessa mão avaramente adunca Não haverão de arracar a luz sagrada! Aves da noite! Asas do horror! Voejai! Que a luz trêmula e triste como um ai,A luz de um morto não se apaga nunca! (Mario Quintana)

Se o poeta falar num gato, numa flor,Num vento que anda por descampados e desvios.E nunca chegou à cidade...Se falar numa esquina mal e mal iluminada...Numa antiga sacada...num jogo de dominó...Se falar naqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade...Se falar na mão decepada no meio de uma escada de caracol...Se não falar em nada.E disser simplesmente tralalá...Que importa? Todos os poemas são de amor! (Antologia poética. Porto Alegre: Globo, 1972 p.105)

Quem sabe um dia Quem sabe um seremos Quem sabe um viveremos Quem sabe um morreremos! Quem é que Quem é macho Quem é fêmea Quem é humano, apenas! Sabe amar Sabe de mim e de si Sabe de nós Sabe ser um! Um dia Um mês Um ano Um(a) vida! Sentir primeiro, pensar depois Perdoar primeiro, julgar depois Amar primeiro, educar depois Esquecer primeiro, aprender depois Libertar primeiro, ensinar depois Alimentar primeiro, cantar depois Possuir primeiro, contemplar depois Agir primeiro, julgar depois Navegar primeiro, aportar depois Viver primeiro, morrer depois. (Mario Quintana)

Tenta esquecer-me...Ser lembrado é comoevocar-se um fantasma...Deixa-me sero que sou,o que sempre fui,um rio que vai fluindo...Em vão, em minhas margens cantarão as horas,me recamarei de estrelas como um manto real,me bordarei de nuvens e de asas,às vezes virão em mim as crianças banhar-se...Um espelho não guarda as coisas refletidas!E o meu destino é seguir...é seguir para o Mar,as imagens perdendo no caminho...Deixa-me fluir,passar,cantar...toda a tristeza dos rios é não poderem parar! (Mário Quintana)

Minha vida não foi um romance...Nunca tive até hoje um segredo.Se me amas, não digas, que morroDe surpresa... de encanto... de medo...Minha vida não foi um romance...Minha vida passou por passar.Se não amas, não finjas, que vivo.Esperando um amor para amar.Minha vida não foi um romance...Pobre vida... passou sem enredo...Glória a ti que me enches a vidaDe surpresa, de encanto, de medo! Minha vida não foi um romance...Ai de mim... Já se ia acabar! Pobre vida que toda depende.De um sorriso... de um gesto... um olhar... (Mario Quintana)

3 ANOS: ELA OLHA PRA SI MESMA E VÊ UMA RAINHA. AOS 8 ANOS: ELA OLHA PRA SI E VÊ CINDERELA. AOS 15 ANOS: ELA OLHA E VÊ UMA FREIRA HORROROSA. AOS 20 ANOS: ELA OLHA E SE VÊ MUITO GORDA, MUITO MAGRA, MUITO ALTA, MUITO BAIXA, MUITO LISO, MUITO ENCARACOLADO, DECIDE SAIR MAS... VAI SOFRENDO... AOS 30 : ELA OLHA PRA SI MESMA E VÊ MUITO GORDA/ MUITO MAGRA, MUITO ALTA/ MUITO BAIXA, MUITO LISO/ MUITO ENCARACOLADO, MAS DECIDE QUE AGORA NÃO TEM TEMPO PRA CONSERTAR ENTÃO VAI SAIR ASSIM MESMO... . AOS 40 : ELA SE OLHA.... VÊ MUITO GORDA, MUITO MAGRA, MUITO ALTA, MUITO BAIXA, MUITO LISO, MUITO ENCARACOLADO, MAS DIZ: PELO MENOS EU SOU UMA BOA PESSOA... E SAI MESMO ASSIM... AOS 50 ANOS: ELA OLHA PRA SI MESMA E SE VÊ COMO É...SAI E VAI PRA ONDE ELA BEM ENTENDER... . AOS 60 ANOS: ELA SE OLHA E LEMBRA DE TODAS AS PESSOAS QUE NÃO PODEM MAIS SE OLHAR NO ESPELHO...SAI DE CASA E CONQUISTA O MUNDO... AOS 70 ANOS: ELA OLHA PRA SI E VÊ SABEDORIA, RISOS, HABILIDADES, SAI PARA O MUNDO E APROVEITA A VIDA... AOS 80 ANOS: ELA NÃO SE INCOMODA MAIS EM SE OLHAR... PÕE SIMPLESMENTE UM CHAPÉU VIOLETA E VAI SE DIVERTIR COM O MUNDO... . TALVEZ DEVÊSSEMOS POR AQUELE CHAPÉU VIOLETA MAIS CEDO... (Mário Quintana)

Não sei por que, sorri de repente.E um gosto de estrela me veio na boca...Eu penso em ti, em Deus, nas voltas inumeráveis que fazem os caminhos...Em Deus, em ti, de novo...Tua ternura tão simples...Eu queria, não sei por que, sair correndo descalço pela noite imensa.E o vento da madrugada me encontraria morto junto de um arroio,Com os cabelos e a fronte mergulhados na água límpida... há os que fazem materializações…grande coisa! eu faço desmaterializações.subjetivações de objetos.inclusive sorrisos,como aquele que tu me deste um dia com o mais puro azul dos teus olhose nunca mais nos vimos (na verdade, a gente nunca mais se vê…) no entanto,há muito que ele faz parte de certos estados do céu,de certos instantes de serena, inexplicável alegria,assim como um vôo sozinho põe um gesto de adeus na paisagem,como uma curva de caminho,anônima,torna-se às vezes a maior recordação de toda uma volta ao mundo!

A vida é um incêndio: nela dançamos, salamandras mágicas.Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta? Em meio aos toros que desabam,cantemos a canção das chamas! Cantemos a canção da vida,na própria luz consumida...(Mário Quintana)

Nós vivemos num mundo de espelhos,mas os espelhos roubam nossa imagem...Quando eles se partirem numa infinidade de estilhas seremos apenas pó tapetando a paisagem.Homens virão, porém, de algum mundo selvageme, com estes brilhantes destroços de vidro,nossas mulheres se adornarão, seus filhos inventarão um jogo com o que sobrar dos ossos.E não posso terminar a visão porque ainda não terminou o soneto e o tempo é uma tela que precisa ser tecida...Mas quem foi que tomou agora o fio da minha vida? Que outro lábio canta, com a minha voz perdida,nossa eterna primeira canção?! (Mario Quintana)

No retrato que me faço- traço a traço -às vezes me pinto nuvem,às vezes me pinto árvore...às vezes me pinto coisasde que nem há mais lembrança...ou coisas que não existemmas que um dia existirão...e, desta lida, em que busco- pouco a pouco -minha eterna semelhança,no final, que restará? Um desenho de criança...Corrigido por um louco!

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...Quando se vê, já é 6ªfeira...Quando se vê, passaram 60 anos...Agora, é tarde demais para ser reprovado...E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,eu nem olhava o relógio.seguia sempre, sempre em frente ...E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas. Mario Quintana


O pintor Waldeny Elias atende à campainha de seu ateliê na rua General Vitorino e lá está Mario Quintana. Viera agradecer pelo presente, uma “pintura de bolso”, de 6 cm x 4 cm. Levava-a, contou com um sorriso português, “na algibeira do fato domingueiro”. Retribuiu presenteando o velho amigo com o recém-lançado livro Do Caderno H.Na dedicatória, justificou porque não havia aceito um quadro grande que o pintor lhe oferecera.- "Elias, me desculpe e acredite. Eu não tenho paredes". Só tenho horizontes...(Juarez Fonseca, Oras bolas - O humor cotidiano de Mario Quintana, Artes e Oficios, Porto Alegre, 1996)

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicasque o vento não conseguiu levar:Um estribilho antigoum carinho no momento precisoo folhear de um livro de poemaso cheiro que tinha, um diao próprio vento...(Mario Quintana)

Não te irrites, por mais que te fizerem...Estuda, a frio, o coração alheio.Farás, assim, do mal que eles te querem, Teu mais amável e sutil recreio... (Mario Quintana)

Recordo ainda...E nada mais me importa...Aqueles dias de uma luz tão mansa.Que me deixavam, sempre,de lembrança,Algum brinquedo novo à minha porta...(...)Eu quero meus brinquedos novamente!Sou um pobre menino...acreditai...Que envelheceu, um dia, de repente!... (Mario Quintana)

Há na vida tanta coisa,Tanta coisa e um só olhar! Toda tristeza dos rios E não poderem parar... (Mário Quintana)

Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar...Fechá-las, de repente,Os dedos como pétalas carnívoras ! Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento Como tecem as teias as aranhas.A que mundo Pertenço ?No mundo há pedras, baobás, panteras,Águas cantarolantes, o vento ventando E no alto as nuvens improvisando sem cessar.Mas nada, disso tudo, diz: "existo".Porque apenas existem...Enquanto isto,O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses E, cheios de esperança e medo,Oficiamos rituais, inventamos Palavras mágicas,Fazemos Poemas, pobres poemas Que o vento Mistura, confunde e dispersa no ar...Nem na estrela do céu nem na estrela do mar Foi este o fim da Criação ! Mas, então,Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos ?Quem faz - em mim - esta interrogação ? (Mario Quintana)

Denso, mas transparente Como uma lágrima... Quem me dera Um poema assim! Mas... Este rascar da pena! Esse Ringir das articulações... Não ouves?! Ai do poema Que assim escreve a mão infiel Enquanto - em silêncio a pobre alma Pacientemente espera. (Mário Quintana)


Não desças os degraus do sonhoPara não despertar os monstros.Não subas aos sótãos - ondeOs deuses, por trás das suas máscaras,Ocultam o próprio enigma. Não desças, não subas, fica.O mistério está é na tua vida!E é um sonho louco este nosso mundo... (Mario Quintana)

Dia de chuva. É para a gente rasgar cartas antigas...Folhear lentamente um livro de poemas...Não escrever nenhum... (Mario Quintana)


Eu ouço música como quem apanha chuva:resignadoe tristede saber que existe um mundoDo Outro Mundo...Eu ouço música como quem está mortoe sente jáum profundo desconfortode me verem ainda nesse mundo de cá...Perdoai,maestros,meu estranho ar!Eu ouço música como um anjo doenteque não pode voar. (Mário Quintana)


Na volta da escada,Na volta escura da escada.O Anjo disse o meu nome.E o meu nome varou de lado a lado o meu peito.E vinha um rumor distante de vozes clamando clamando...Deixa-me!Que tenho a ver com as tuas mãos perdidas?Deixa-me sozinho com os meus pássaros...com os meus caminhos...com as minhas nuvens...(Mario Quintana)

Olho o mapa da cidadeComo quem examinasse A anatomia de um corpo...(É nem que fosse o meu corpo!)Sinto uma dor infinitaDas ruas de Porto Alegre Onde jamais passarei...Há tanta esquina esquisita,Tanta nuança de paredes,Há tanta moça bonita Nas ruas que não andei(E há uma rua encantada Que nem em sonhos sonhei...)Quando eu for, um dia desses,Poeira ou folha levada No vento da madrugada,Serei um pouco do nadaInvisível, deliciosoQue faz com que o teu ar Pareça mais um olhar,Suave mistério amoroso,Cidade de meu andar(Deste já tão longo andar!)E talvez de meu repouso...Mário Quintana

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas, teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento das horas ponha um frêmito em teus cabelos... É preciso que a tua ausência trescale sutilmente, no ar, a trevo machucado, a folhas de alecrim desde há muito guardadas não se sabe por quem nalgum móvel antigo...Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela e respirar-te, azul e luminosa, no ar.É preciso a saudade para eu te sentir como sinto-em mim- a presença misteriosa da vida...Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista que nunca te pareces com o teu retrato...E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te! (Mário Quintana)


"Deficiente" é aquele que não consegue modificar a sua vida, aceitando a imposição de outras pessoas ou da sociedade em que vive, sem ter consciência de que é dono de seu destino."Louco" é quem não procura ser feliz com o que possui."Cego" é aquele que não vê seu próximo morrer de frio, de fome, de miséria, e só tem olhos para seus míseros problemas e pequenas dores."Surdo" é aquele que não tem tempo de ouvir o desabafo de um amigo, ou o apelo de um irmão. Pois está sempre apressado para o trabalho e quer garantir seus tostões no fim do mês."Mudo" é aquele que não consegue falar o que sente e se esconde por trás da máscara da hipocrisia."Paralítico" é quem não consegue andar na direção daqueles que precisam de sua ajuda."Diabético" é quem não consegue ser doce."Anão" é quem não sabe deixar o amor crescer."A amizade é um amor que nunca morre". Mario Quintana

Amigos, não consultem os relógios quando um dia eu me for de vossas vidasem seus fúteis problemas tão perdidas que até parecem mais uns necrológios...Porque o tempo é uma invenção da morte:não o conhece a vida - a verdadeira -em que basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira.Inteira, sim, porque essa vida eterna somente por si mesma é dividida:não cabe, a cada qual, uma porção.E os Anjos entreolham-se espantados quando alguém - ao voltar a si da vida -acaso lhes indaga que horas são...Mario Quintana

Eu escrevi um poema triste E belo, apenas da sua tristeza.Não vem de ti essa tristeza Mas das mudanças do Tempo,Que ora nos traz esperanças Ora nos dá incerteza...Nem importa, ao velho Tempo,Que sejas fiel ou infiel...Eu fico, junto à correnteza,Olhando as horas tão breves...E das cartas que me escrevesFaço barcos de papel! Mario Quintana

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,não falaria em Deus nem no Pecado- muito menos no Anjo Rebeladoe os encantos das suas seduções,não citaria santos e profetas:nada das suas celestiais promessasou das suas terríveis maldições...Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,Rezaria seus versos, os mais belos,desses que desde a infância me embalarame quem me dera que alguns fossem meus!Porque a poesia purifica a alma... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -um belo poema sempre leva a Deus! Mário Quintana

As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis sobre um fundo de manchas já cor de terra - como são belas as tuas mãos pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos... Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,essa beleza que se chama simplesmente vida. E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua cadeira predileta, uma luz parece vir de dentro delas... Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste alimentando na terrível solidão do mundo, como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento? Ah! Como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos! E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas... essa chama de vida - que transcende a própria vida e que os Anjos, um dia, chamarão de alma. Mario Quintana

Quem nunca quis morrer. Não sabe o que é viver Não sabe que viver é abrir uma janela E pássaros pássaros sairão por ela E hipocampos fosforescentes Medusas translúcidas Radiadas Estrelas-do-mar... Ah,Viver é sair de repente Do fundo do mar E voar...e voar...cada vez para mais alto Como depois de se morrer! Mário Quintana

Era um caminho que de tão velho, minha filha,já nem mais sabia aonde ia...Era um caminho velhinho,perdido...Não havia traços de passos no dia em que por acaso o descobri:pedras e luzes iam cobrindo tudo.O caminho agonizava, morria sozinho...Eu vi...Porque são os passos que fazem os caminhos!
Mário Quintana

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos colhidos no mais íntimo de mim...Suas palavras seriam as mais simples do mundo, porém não sei que luz as iluminaria que terias de fechar teus olhos para as ouvir...Sim! Uma luz que viria de dentro delas,como essa que acende inesperadas coresnas lanternas chinesas de papel! Trago-te palavras, apenas... e que estão escritasdo lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube o que dizer-tee este poema vai morrendo, ardente e puro, ao ventoda Poesia...comouma pobre lanterna que incendiou! Mario Quintana

Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês.Quando fechas o livro, eles alçam vôo como de um alçapão.Eles não têm pouso nem porto alimentam-se um instante em cada par de mão se partem.E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhado espanto de saberes que o alimento deles já estava em ti... (Mario Quintana)

Eu gosto de fazer poemas De um único verso Até mesmo de uma única palavra Como quando escrevo o teu nome.No meio da página.E fico pensando mais ou menos em ti Porque penso, também, em tantas coisas...Em ninhos, não sei por que, vazios,Em meio a uma estrada deserta;Penso em súbitos cometasanunciadores do novo mundo;E imagine!...Penso em meus primeiros exercícios de álgebra.Eu que tanto, tanto os odiava!Eu que naquele tempo vivia dopando-meEm cores, dores, amores...Ah... prometo àqueles meus professores desiludidosQue na próxima vida serei um grande matemáticoPorque a matemática é o único sentimento sem dor.Prometo, prometo sim...Estou mentindo?!Estou!Na verdade, é tão bom morrer de amor.E continuar vivendo! Mário Quintana


Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esseQue me olha e é tão mais velho do que eu?Porém, seu rosto...é cada vez menos estranho...Meu Deus, Meu Deus...PareceMeu velho pai - que já morreu!Como pude ficarmos assim?Nosso olhar - duro - interroga:"O que fizeste de mim?!"Eu, Pai?! Tu é que me invadiste,Lentamente, ruga a ruga...Que importa? Eu sou, ainda,Aquele mesmo menino teimoso de sempreE os teus planos enfim lá se foram por terra.Mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!-Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste...( Mário Quintana )